"A melhor maneira de acabar com o preconceito é tirar a palavra. Daí a ideia de criar um ícone para expressar isso: a pessoa comendo banana. Não dá nem pra rir desse con
ceito porque o caso é grave. Milhares, talvez milhões, de pessoas compraram a ideia de que estão fazendo alguma coisa relevante e decisiva para a causa antirracista exibindo suas fotos comendo banana.
A presidenta Dilma, de quem gostaríamos de ver muito mais empenho em causas importantes para a população negra, apoia essa campanha da Loducca e ainda escreve um tuíte que perigosamente resvala na retomada da ideia de democracia racial: “Vamos mostrar q nossa força, no futebol e na vida, vem da nossa diversidade étnica e dela nos orgulhamos".
Não, a Copa não será sem racismo. A não ser que nos surpreendamos todos com as recém-descobertas propriedades antirracistas da banana. O nosso bom e velho racismo continuará durante e depois da Copa, e talvez apenas não se manifeste durante os jogos. Adoraríamos ser ouvidos e respeitados para além das exigências da FIFA. Racismo é crime! É muito sintomático da impunidade desse crime, perigoso e inaceitável – frise-se: inaceitável – que uma chefe de nação apoie uma campanha que, em vez de pedir punição para um crime do qual muitos brasileiros são alvo todos os dias, incentive o consumo de bananas. A digníssima presidenta tem noção do que ela fez? Racismo no Brasil é crime, presidenta. Inafiançável. Imprescritível. Crime! Anos e anos de luta dos movimentos negros para que racismo seja considerado crime, em um país que aos trancos e barrancos vem relutando em se admitir racista, vão por água abaixo quando uma presidenta acha que está tudo bem “punir” criminosos – frise-se: criminosos – com a “resposta ousada e forte” (palavras dela no Twitter) de se comer banana! Que ela desmonte os sistemas judiciário e penal e instale fazendas de bananas pelo país inteiro, oras; de preferência com uns pretos realizando o trabalho de plantar, colher, recolher e comer. Fiscalizados, é claro, pelo Ministério da Agricultura, como era na época da escravidão.
Olha aí, Luciano Huck, grande oportunidade de investimento! Porque tem ele também, correndo pelas laterais:
Luciano Huck, que parece ter sido super importante para a propagação dessa campanha, com seus milhões de seguidores no Twitter. Tentando lucrar em cima da dor alheia, porque ele e sua família loira nunca foi nem será alvo de racismo, descascou rapidinho a banana de Andy Warhol (ou a camiseta já estava pronta também, assim como a campanha, apenas esperando uma “oportunidade”?), apropriou-se do mote da campanha publicitária e vestiu dois modelos brancos para tripudiar da nossa causa e vender camisetas a R$ 69,00.
Essa campanha também é racista, e estão tentando nos empurrá-la garganta abaixo, dizendo que não. Essa campanha é vazia, burra, rasa, oportunista, leviana, desrespeitosa, criminosa. Reforça estereótipos e barra o diálogo, e por isso o seu sucesso, já que ninguém quer mesmo se envolver muito com o assunto. Está se sentindo ofendido ao ler isso aqui, porque aderiu e/ou achou o máximo? Vá brigar com a Loducca, o pai do Neymar, o Neymar, o Luciano Huck, a presidenta Dilma, as pessoas que nunca levaram a sério a tentativa de diálogo que os movimentos negros estão, há décadas, tentando estabelecer. Se a gente tivesse conseguido ter esse diálogo, uma das coisas que daria para perceber é a dificuldade de se esvaziar a simbologia impregnada em um ícone racista. A banana é um ícone racista, usado por racistas para xingar negros de macacos. Não é um publicitário que, de uma hora para outra, vai declarar que ela não é mais e, como num passe de mágica, ela passa a não ser. Esse pensamento mágico já foi tentado durante várias décadas, com a democracia racial. A gente sabe que não funciona, e bananas atiradas em campo, guinchos e trejeitos imitando macacos ainda estão aí para provar. Não para negar. Numa comparação bem baixa e um pouco falha, eu sei, mas necessária porque é preciso colocar as coisas em perspectiva, será que o Luciano Huck teria coragem, por exemplo, de vender camisetas estampadas com a suástica, símbolo impregnado de nazismo/racismo, porque um publicitário e um jogador de futebol dizem que, de uma hora para outra, comer biscoitinhos em forma de suástica, e fotografar-se comendo-os, é a melhor maneira de ressignificar esse símbolo e transformá-lo em seu contrário, apagando sua história e acabando com o racismo contra judeus? Pois é. Queria ver. Bem como queria ver também outro chefe de nação dizendo a seus cidadãos judeus que tenham sido vítimas de um “Heil Hitler” com seu gesto característico e com a intenção de ofender e humilhar, que é ousada e forte a atitude de, em vez de exigir punição, brincar de “engolir” a humilhação?
O que aconteceu em campo, com o Daniel Alves (a quem presto toda a minha solidariedade), poderia ter provocado uma discussão produtiva, se não tivesse sido esvaziada por essa campanha infeliz e tivesse sido seguida, principalmente por parte dele, de um discurso um pouco mais consciente e consistente. Dá para perceber o despreparo da maioria dos nossos atletas ao lidar com o racismo quando ficamos sabendo, por exemplo, da atitude (essa sim) dos jogadores de basquete do Los Angeles Clippers. Os caras protestaram contra declarações racistas do dono do time – sim, do dono, não de um torcedor – reunindo-se antes de uma partida, no centro da quadra, retirando seus uniformes e usando as camisas de aquecimento do lado do avesso, escondendo o logo do time.
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Ana Maria Gonçalves |
Enquanto isso, temos uma presidenta que se presta ao papel de ficar batendo palma para internautas dançarem sobre nossas dores, involuírem com as nossas lutas e comerem banana. Porque ela acha que salientar a nossa origem comum de primatas vai fazer com que racistas, que nem se assumem e nem se sabem racistas, deixem de ser racistas. Às vésperas de uma Copa na qual quer mostrar ao mundo que somos modelo de combate ao racismo.
Se a gente não quer passar mais vergonha ainda, e nem digo como nação, mas como seres pensantes e atuantes em causas que nos são caras (racismo e paz, além de outras coisinhas mais), está é mais do que na hora de tomarmos as rédeas dessa campanha. Na raça. Porque não dá pra confiar nesse povo que está aí no comando, fingindo que pensa o problema, que planeja, que se preocupa e que resolve, enquanto só o empurra pra baixo do tapetão. Que tal pensarmos juntos numa campanha paralela, realista, denunciatória e que eleve o nível dessa discussão?
Douglas Belchior explica: “O racismo é algo muito sério. Vivemos no Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo.”