Começou a campanha nacional de vacinação contra poliomelite e sarampo. Levei meu filho ao posto de saúde da Vila Romana, em São Paulo. Estava cheio, mas estávamos acomodados. Mães, pais, avós. Crianças, idosos, bebês. Na sala de espera, o painel apitou a próxima senha. Entrou a mãe com bebê de colo.
Meu Raul, zanzando entre uma criança e outra, esbarrou levemente no pé direito do senhor ao lado. Este, exagerado, se contorceu, gemendo. Nós, mães, trocamos olhares cúmplices: havia uma estranheza no ar.
Pedi desculpas, e o senhor disse:
-"Não foi culpa dele; foi culpa da maldita podóloga que me arrancou um bife".
-"Você ficou sem bife?", perguntou meu filho de 3 anos.
Ele não respondeu. Nem mesmo um amarelo sorriso cordial.
Por precaução, mudei de lugar para mantê-lo distante da minha criança. Espera.
Mais espera.
Fuçando no celular, o senhor deu play num volume bem alto. As crianças, naturalmente atraídas pela música, bisbilhotavam a tela do aparelho. Ele, irritado, bufava tentando manter seu artefato tecnológico barulhento longe dos pequenos 'sem modos'.
Travou-se embate velado: nós, cuidadores, afastando os rebentos da armadilha do cidadão peculiar. Um alvoroço; teve um que até chorou. Aí o pai botou galinha pintadinha pra acalmar o pequeno.
Abriu-se, finalmente, a porta da sala de vacinação. Confesso que todos tínhamos a esperança de que a mãe saísse com seu bebê, para avançarmos nas senhas intermináveis, sem delongas.
O distinto senhor “de bem” não se conteve. Imperativo, bradou:
-"Só no Brasil a gente é trouxa pra aguentar essa demora!"
O enfermeiro veio à porta. E ele continuava gritando:
-"Precisam contratar gente mais preparada!"
Olho no olho. O profissional respondeu:
-"Estou sozinho para atender todo mundo, senhor".
-"Isso não é culpa minha!", o paciente retrucou.
-"Ninguém aqui vai ficar sem vacina", apaziguou o doutor.
-"É igual vacinar gado!", o velho disse.
-"Então o senhor me desculpe, mas está no lugar errado. Porque aqui tem médico e enfermeiro, mas não veterinário".
Nós, a torcida na sala de espera, vibrávamos discretamente.
O dito cujo cozinhava seu ódio em sangue nos olhos. As crianças, estateladas, todas olhavam pra ele. O ogro. Até o bebezinho, nessa hora, acordou.
-Sabe o que vou fazer?! - urrava em descontrole.
Nada paciente, ele foi caminhando em direção ao enfermeiro. Gelei. Que SUSto.
Ele ergueu seu cartão dos SUS, desafiando a figura do médico, e amassou-o em pedaços. Se vangloriava, dizendo: “Eu não preciso disto! Eu tenho dinheiro!”
E o homem jogou o cartão na cabeça do profissional, gente. Na cabeça dele, juro.
…
Essa pausa de um parágrafo representa a sala de espera depois que o brutamontes saiu. Cruz credo. Climão.
Leandro Torres, o bom profissional, respirou fundo para recuperar sua elegância. Olhou para toda sua gente, sorriu para a criançada e disse:
-Esperem aí que o tio está quase chamando a vez de vocês, tá bom?
E foi assim que todos foram vacinados hoje, pela manhã, na UBS da Vila Romana, onde um certo enfermeiro Leandro Spalato Torres, o famoso “tio Lelê” da criançada, faz a diferença todos os dias. Com ele, trabalha também o enfermeiro Cláudio… (qual sobrenome?), que é igualmente genial no trato com nossos pequenos.
Por mais profissionais como vocês, que amam o que fazem. Obrigada pelo carinho, atenção e cuidado com as pessoas que usam o sistema público de saúde no Brasil.
Porque gente não é gado.
❤
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