Gerações adiante, uma sobrinha-neta de Dona Isaura, dessas balzacas que engravidam depois dos 35, resolveu ganhar neném numa piscina cheia de água morna, com desenhos de peixes coloridos. Pesquisou: “parto na água” em sites, blogs, textos; “parto normal” em vídeos, fóruns, grupos; “parto natural” em livros, revistas, depoimentos; “parto humanizado” em filmes, artigos, rodas. E, obviamente, chorou rios com "
O Renascimento do Parto - O Filme". Essa grávida monotemática e empoderada, sobrinha-neta da saudosa tia Isaura, que resolvera receber seu bebê com doçura e delicadeza, claro, sou eu. E, sob meu olhar, esse é nosso relato de parto humanizado, que foi o que de mais intenso aconteceu em toda minha existência. Todo o amor ao homem mais lindo que já amei (por dentro e por fora);
Marcelo (mar+céu), que é meu marido, melhor amigo e maior amante desde 1978.
RECIFE, NOVEMBRO DE 2014
Naquela noite, na sala de bem-estar, depois da sopa de legumes, o casal preparou-se para dar play num filme no DVD. Aí, surpresa: a mulher começou a sentir as benditas contrações. “Se for só isso, beleza”, pensou. Fechava os olhos, respirava fundo, soltava o ar. O filme, no pause. O marido, em alerta. Ah! E continuaram. Gradativamente mais intensas. E mais, e mais.
Horas depois, a solução foi entrar no chuveiro; banho de água quente ajuda. Melhorou um pouco, ufa. Tudo ficou mais forte; inclusive ela própria. Impossível fugir do encontro com sua natureza. Deitou-se para descansar; e veio outra... ah! Obcecada, se viu usando aplicativo de iPhone para tentar registrar a duração e os intervalos das contrações (árdua missão). Madrugada adentro, ligou para sua doula
Ludmila Cavalcante, que acalmou: “Brenda, quando for, você vai saber”. Ah bom. Mensagem do Doutor: “São os pródromos, aproveite”. Palavra nova, essa. Ah! Veio outra.
Com custo, dormiu. Sonhou. Delirou. Acordou. Gemeu. Foi uma noite cheia de vida própria: a própria vida e a gerada dentro de si, que, na verdade, seria parte da sua até seus últimos dias.
32 HORAS DEPOIS...
Já na
Maternidade Santa Lúcia, pendurado à maçaneta da suíte hospitalar, o aviso “Não perturbe, estou parindo”. No canto mais espaçoso, a piscina (olha a mangueira esguichando). No centro, a cama (tem até alavanca). A bola de pilates (logo eu, que nunca levei jeito pra pilates). O som lá de casa, o abajur meia-luz, as almofadas cheirando à lavanda, o aroma dos óleos relaxantes, a bandeja de guloseimas (com castanha, chocolate, suco)... pronto. Depois de mais de 12 horas ininterruptas de trabalho de parto, de 9 meses de uma jornada inexplicável, de 8 centímetros de dilatação e de 10 anos de um amor que floresce, lá estava eu, com meus medos e vontades, prestes a parir dentro d’água e colocar uma pessoinha no mundo. Pessoinha esta que mudaria a razão da minha existência, diga-se.
Quanto mais difícil ficava o trabalho, mais importante a confiança na equipe. A doula me fazia massagem mágica. O obstetra Doutor Renato Grandi Ramalho (eterna gratidão) me dizia palavras-coragem. A parteira mais que incrível
Suzely Aragãosempre ali, só coração. O amor-marido Marcelo me dava beijo na boca para liberar ocitocina... ah! Veio outra. Mais forte que a anterior. Aí me sugeriram vocalizar bem alto, com força, na hora da dor. No início, o fiz com um pouco de vergonha, confesso, me sentindo meio ridícula. Depois, pela sensação amenizadora, adotei como essencial ao bem parir. Ah! Outra. Ondas...
Entrei na piscina como num mergulho sem volta; e era, mesmo. Calor, muito calor. Senti a compressa de água fria na testa... ô beleza de doula. Cadê o chocolate que disseram que tinha? Minha mãe
Marizia sempre disse que 'é a pior dor do mundo essa tal dor do parto'; se ela tiver razão, a coisa tende a ficar feia pro meu lado. Sim, porque, até o momento, estava quase suportável. Chegaria num estágio de dor para “cavalo do cão chupando manga”? E lá vem outra... ah! Vem, Raul. Meu filho, vem.
Marcelo colocou “Afrosambas” para tocar:
Vinicius de Moraes e
Baden-Powell. “Pergunte ao seu Orixá, o amor só é bom se doer”, cantavam... ah! E como doía. O tempo ia passando... e nada. Eu lá, esparramada na piscina, com a barrigona do tamanho do sol, e nada de neném. Parece que, por instantes, me vi fora do meu corpo... mas depois voltei. Acho que estive num universo paralelo, transportada para outra dimensão chamada “partolândia”, onde as coisas não são muito claras. Ou são, não sei.
*EXPULSIVO*
Tá na cara que isso não vai dar certo. Não tem como. Pra quê fui inventar moda?! Já deve passar das 5 da tarde... esse povo todinho aí, e nada. E agora, gente?
Auscultam meu bebê: batimentos fetais perfeitos. Ufa... ah! Lá vem a danada... ah!
-Doutor Renato do céu, não consigo fazer mais força que isso!
Ele, sereno, só ri:
-Não precisa. Faça só a força que sentir vontade. Ele está vindo no tempo dele.
Nossa. Então é isso. É normal. E lindo. Ah!
-Coloque sua mão para tocar a cabecinha do seu filho.
“Ah! É demais pra mim”, penso. Coloco, sinto... é meu filho! E ele, então, “desnasce” pra dentro de mim. Juro: a cabecinha do menino entrou.
-Ah, não! Ele tá entrando- choramingo. Todos riem, meus amigos.
Eu, cansada dessa última fase de vai-não-vai... socorro. Eu sabia que seria assim? Lá vem outra... ah! O bebê sabe nascer. Mas eu vou, mesmo, saber parir? Delírio, tremo. Tia Isaura sussurra no meu ouvido: “Nossa Senhora passa a mão na cabeça”. Água. Quero água, anda logo, porra... ah! Lá vem. Arranho a batata da perna do Marcelo, controlando a vontade de mordê-lo pra arrancar pedaço, estraçalhar o coitado. Está pegando fogo, gente! Puta que pariu, merda... ah! Gente, estou me rasgando todinha; pela metade. Juro. Ah! A maior força do mundo, estou fazendo agora. Olha... ah! Não aguento mais isso. Meu lado-bicho vai me explodir... ah! “Amar é morrer de dor”, cantam, no som. Estéreo, acho. Está vindo outra. Respiro, fundo. De novo. Força! Desliga essa merda de música, Marcelo, vai, anda logo. O som. Porra! Silêncio. Eu respiro. Mas tenho certeza que estou morrendo. Vem, meu filho. Meu menino, serafim. Será fim? Agora. Vem, Raul. Morri. Olha. Saiu. De dentro de mim. O meu filho. Ali, olha a cabeça dele toda pra fora de mim. Parou no ombro, normal. Parou o tempo, aqui. Estou paralisada, olhando pra ele sob a água. Ah! Nasceu meu bebê. Todo, inteiro, com dedinhos magros em cada mãozinha. Nasceu com os olhos bem abertos; recém-nascido curioso, esse meu Raulzinho. Jorrou vida afora, já pronto, com o cordão laçado no pescoço; doutor Renato e parteira Suzely desenrolaram, com delicadeza e segurança. Eu, a mãe, peguei meu bebê no colo e o coloquei junto ao meu coração, cujas batidas, certamente, lhe eram familiares...
Seu cheiro, meu filho... nunca me esquecerei do seu cheiro. Tão bom! Cheiro de deleite doce, meu amor, vérnix e vida. Bem vindo, meu bebê. Conseguimos! Nós conseguimos, filho. Graças a todos nós, juntos, ali renascemos, com mais força e poder. Às 11:13h de uma manhã de sexta-feira que mudou todo o meu viver. E, a partir daí, só nos resta toda a vida pela frente, Raul, meu filho, meu presente.
Houve olhares, lágrimas, sorrisos, silêncio. Lufada de ar no pulmão: dor. Choro. Cantei nossa música; reconheceu de imediato. Suspirou. Chorou o pai, a mãe, o filho... chorou toda a equipe. Afinal, vida, morte e sexualidade tocam fundo no coração da gente. O quarto é inundado por um amor tão visceral que é quase palpável: flutua no ar como um halo que coroa a aura.
-Respire, Brenda. Você está respirando por ele, continue respirando.
Quando para de pulsar, o pai corta o cordão umbilical. Mas o invisível permanece atado, para sempre. Dequita-se a placenta: o sangue marca, no papel Canson, uma árvore da vida. Pontos. Ele, sempre colado à mãe; formamos quase um só. O ambiente é calmo, temperatura agradável, luz amena. Ele mama. Eles amam. E dorme o anjo, contemplado com ternura e silêncio. Que transformação sagrada: do divino ao humano e do humano ao divino em segundos e para sempre, amém. Nada como a bênção perene da suma perfeição. É uma dádiva confiar na vida e desfrutar dessa coisa mágica que é ser mãe. MUITO OBRIGADA!